domingo, 14 de setembro de 2008

Discriminação e linguagem oprimida

“O terceiro mundo precisa começar uma nova história”
(Frantz Fanon)
I
É de conhecimento de todos que a sociedade está dividida em classes. Olhemos em volta por um instante, ou então caminhemos pelas ruas para ver o que os livros, revistas e jornais nos dizem constantemente. São muitas informações, cada qual a sua maneira e às vezes não acessíveis a todos, devido ao código lingüístico ali encontrado. Além disso, podemos encontrar pessoas de diversas localidades do país; cada uma falando a sua maneira, demonstrando suas relações com a cultura, que às vezes utiliza-se de modos não convencionais de linguagem e isto apenas demonstra as implicações complexas e peculiares do jeito de ser de cada um, trazendo em si seus modos e sua cultura. Este é o Brasil que vivemos, dividido em suas múltiplas facetas.
No entanto, é nesta mesma sociedade que presenciamos um forte exercício de controle de linguagem e dos modos de falar, de se comportar e até de uma suposta ação que diz ser correta e “democrática” para determinados segmentos sociais. Acontece, porém, que ao mesmo tempo em que se fala em ação democrática para tais grupos sociais, Gnerre menciona que o que ocorre é uma discriminação de forma explícita (não encoberta) com base nas capacidades lingüísticas medidas no metro da gramática normativa e da chamada “língua padrão” No entanto, o que ocorre é uma constante redefinição de “normas” e de um novo consenso para ela.
Neste sentido, adquire-se uma complexa relação entre linguagem, poder e discriminação que ocorre no cotidiano das relações sociais, de forma velada e amparada pelos “discursos oficiais” que dizem o que é certo e o que é errado para a sociedade. Entretanto, esta complexa relação (dita anteriormente) escandaliza-se quando alguém se desvia das “normas” postas pelos legisladores e o que ocorre é uma rápida tentativa de ajustar o discurso à “norma” estabelecida. Não falta quem denuncie esta subordinação. Desde os primeiros dias na escola aprendemos que as construções do engenho humano foram realizadas por determinados grupos sociais, o que não entendemos é que estas construções de pequenos grupos privilegiados são resultados de convenções sociais destes que decidiram sobre o que deveria ser preservado e silenciado. Romão elucida um exemplo interessante acerca da questão por meio da expressão “ pas de documents, pas d’histoire”. “Esta expressão é reveladora; se não há história onde não há documento escrito, não há história do povo, por que este geralmente não escreve. Este absolutismo documental escrito na ciência histórica é um dispositivo ideológico excludente, usado pela cultura letrada e velado sob o argumento de uma superioridade epistemológica em relação aos “registros “da oralidade gravada na memória das gerações”.
É preciso verificar que estas relações não ocorrem de forma neutra, ou seja, há uma intenção ao fazê-las no momento em que tais atos se tornam públicos. Neste sentido, podemos dizer que nestas relações sociais há ideologia, existem inúmeros exemplos: quando uma pessoa nos diz: “Nós fomos à casa de João” é aceitável. Porém, quando se é dito: “ A gente fomos na casa de João”, e a pessoa diz: “Está errado, não é a forma correta de falar!” É preciso verificar neste discurso as relações ideológicas e discriminatórias que nelas contêm.
Quando um determinado discurso é aceito, existe uma convenção que o ampara no seu modo correto de falar, mas quando este falar é considerado incorreto e é repudiado por aqueles que tentam ajustá-lo a “norma”, o que ocorre não é simplesmente uma repreensão, mas uma sutil discriminação que exclui “aquele que não sabe falar” segundo as normas estabelecidas.
É interessante relembrar José Eustáquio Romão, para o autor à variedade das línguas neolatinas não derivou do latim clássico, e sim, do latim vulgar. Não faz sentido que as escolas de língua neolatina rechacem o dialeto popular em nome de uma “maior riqueza da norma culta”. Não estariam estes alimentando um certo “classicentrismo”?
II
A linguagem não é usada somente para informar, a função cerne da linguagem é transmitir alguma idéia ou orientação a quem a presencia. As pessoas falam para serem ouvidas, para serem respeitadas, e para exercerem influência no ambiente em que ocorrem os atos lingüísticos. Este tipo de relação adquire cada vez mais força quando é exercido no âmbito social, histórico e político, pois as palavras possuem história e o que predomina neste jogo são as regras. Toda pessoa precisa saber das regras que governam as produções apropriadas para os atos lingüísticos. Gnerre menciona que todo ser humano tem de agir de acordo com tais regras, é preciso saber o momento de falar, isto é, quando pode e não pode e que tipo de variedade lingüística é oportuna para que seja usada. Tudo isso em relação ao contexto lingüístico e extralingüístico em que o ato verbal é produzido.
A presença de tais regras ganha configuração consubstancial não só para quem fala, mas para quem ouve, e é com base nas regras que se pode ter alguma expectativa em relação à produção lingüística do falante. Esta capacidade de previsão é devido ao fato de que nem todos na sociedade brasileira possuem acesso as variedades dos conteúdos referenciais. Somente uma pequena parcela dos brasileiros tem acesso tais variedades, tida como “culta” ou “padrão”, que é considerada geralmente a língua que possui conteúdos de “prestígio”.
Esta variedade lingüística é o reflexo do poder e da autoridade nas relações sociais e econômicas. A diferenciação política é um elemento imo para a diferenciação lingüística. Neste sentido, a evidência que Gnerre nos aponta é que a associação entre variedade e comunicação escrita implica em refletir sobre o processo de elaboração da mesma. Citando Habermas, o autor comenta que legitimação é o processo de produzir idoneidade ou dignidade a uma ordem de natureza política, para que seja reconhecida e aceita.
O código; aceito pelo poder é tido como neutro e superior e todos os cidadãos precisam produzi-los para entender. Mas há um elemento interessante a se verificar nesta complexa relação entre linguagem, poder e discriminação. Os cidadãos, apesar de declarados iguais perante a lei, são discriminados na base do código em que a lei é redigida, isto ocorre porque a maioria destes possui reduzidas possibilidades de acesso constituídas pela escola e pela “norma” pedagógica ensinada. O fato de as pessoas serem discriminadas pela maneira como falam está intrinsecamente ligado às relações de poder, entre a norma reconhecida e a aproximação deste com a norma. Neste processo, existem segmentos sociais que são peças chave para a continuidade deste processo, um deles é a escola, que por meio de sua gramática normativa “tenta” ensinar aqueles que supostamente não sabem.
É preciso observar que neste deficitário quadro, a escola tem sido um dos instrumentos superestruturais mais poderosos para a manutenção e reprodução da linguagem dominante; isto ocorre pela difusão da ideologia predominante nos currículos, no disciplinamento adestrador dos alunos, pela imposição de valores burgueses, pelo submetimento a regras do trabalho, exploração e consumo do capital.
Resta-nos a pergunta. E a grande parcela dos brasileiros discriminados que não tem acesso a esta variedade lingüística? O que fazem?
Neste sentido, a assunção do discurso dominante, é, portanto, a linguagem do dominante. E ao assumi-la, tem-se uma linguagem oprimida, silenciada.

3 comentários:

kathy disse...

Concordo que as vezes nós mesmo usamos uma linguagem elitizada , a linguagem é a mae da inteligencia.

Marcelo Mafra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcelo Mafra disse...

meu estou totalmente de acordo, essa opressão linguistica é dominante... principalmente nas academias brasileiras que vivem no seu "mundo-cúpula" chicoteando-nos com suas linguas incisivas, dissolvendo assim, identidades oriundas de um povo rico em uma sabedoria mais complexa que eles pensam... bom, não é por acaso que tivemos e, ainda temos, grandes pensadores que foram estudar nossa cultura com sua ciência desenfreada, mas aguns tiveram a sensibilidade de apenas vislumbrar, mas outros, puro cientificismo!!! se voltarmos um pouquinho no tempo, vemos uma religião de matriz africana ser perseguida por seus dialetos, crenças etc.; agora se voltarmos a nossa época vemos a mesma religião ainda sendo ofuscada por uma supremacia burguesa amedrontada, por isso sua luta contra uma linguagens através das imagens,das musicas e das falas é e, sempre será, constante; mas basta-nos ostentar nossas raizes para que esses burgueses amedrontados saiam correndo!!!